É estranho como algo tão antagónico como estes dois conceitos se pode tornar, no meu caso pelo menos, algo ambíguo. A distinção clara escorre pelas paredes de uma consciência que não sabe o porquê das acções que comanda. Falsidade ou bondade? O problema, a chave da questão: o perdão. Mas existe ele realmente?
Eu estava chateada. Do fundo do coração, eu estava chateada, magoada, furiosa em silêncio. Ninguém sabia. Os alvos, os responsáveis, não sabiam. É claro que não! Tirando outras coisas, eu estava chateada pelo telefone que não tocou, as notícias que não chegaram, a ruptura completa por três meses daquilo a que se supõe ser uma amizade. (Amizade, pois sim, aposto que a definição, nem que seja a do dicionário, não estamos sequer a falar do coração, não encaixa.) Mas então os três meses acabaram e elas foram obrigadas a encarar-me. Eu comparo-o a alguém que vive do turismo, que nos meses de inverno vive com os trocos porque os turistas lhe falham, mas que chegando ao verão lhes abre os braços e sorri, perdoando-os pela ausência, como se não tivesse sofrido por isso. Na realidade, teremos de inverter as estações. E levar tudo para o plano emocional. A parte importante: o perdão; o fingir que nada aconteceu, como se ontem eles tivessem estado lá e não há três meses. Repetir a rotina… Para onde foi o ressentimento? Eu não queria olhar para elas e agora sento-me a seu lado cada manhã no autocarro. Costume? Se eu tivesse realmente zangada, estava-me pouco importando para o costume, para não ser grosseira e manchar isto com calão. Mas não, era-me indiferente, como sempre foi. O que se passou? Não sou dependente elas (ao menos sei que sobrevivo, e talvez melhor, sem elas, sem culpa de deixar para trás – o quê? Um cadáver? Porventura tenho apenas esperança nesses poucos gesto humanos e generosos). Pergunto-me se as perdoei. Perdoei mesmo? Sei que não… Então, de volta à questão, agora perfeitamente contextualizada e com sentido, falsidade ou bondade?
Podemos não ter realmente perdoado, mas aceitado, tolerar e fingir que tudo está como devia ser (grande mentira, mas enfim). Podemos deixar passar aquelas conversas maldosas e mesquinhas de má índole que me chegaram aos ouvidos. Podemos ignorar, mesmo no fundo não esquecendo, mas com toda a certeza sabendo que nunca lhes vamos atirar nada daquilo à cara e oficializar hostilidades. Podemos ser melhores e passar por cima. Isso seria bondade, certo?
Mas é realmente? Ou por continuar no mesmo lugar de sempre, ao lado das pessoas de sempre, ouvindo as conversas de sempre, quando apesar dos sorrisos as condenamos por isto ou aquilo, não estamos a ser falsos? Por não ter dito o que pensei, por não ter jamais dito nada, além das palavras vazias do costume, não estarei a ser fingida? Passando essa imagem de que está tudo bem, de que me sinto bem… Mentira. Falsidade. Mas querendo ainda continuar ali, por alguma razão desconhecida. Ou tão simples como ainda gostar delas. Isso seria novamente bondade. Mas e o resto? O quer quem se deve ser e não o que se é; o dizer o que se deve dizer e ouvir então minha voz soando vazia, enquanto os pensamentos puros e sinceros são trancados, expressos talvez na expressão a que ninguém olha ou dá importância. Sou uma boa fingidora. No sentido literal de ambos os adjectivos. Ou ficaria melhor uma fingidora boa? Parece não colar de qualquer das formas. Mas contudo percebi que não se trata de ou bondade ou falsidade. A questão é: se por bondade somos falsos, ainda podemos dizer que somos bons?