domingo, 31 de outubro de 2010

Atitude Morta

O delírio era doce e consciente, enquanto deitada na cama pequena demais para o seu tamanho. A luz no tecto tinha um pesado ar hospitalar e zumbia. O chão era o refúgio cansado dos objectos que sustentam a vida humana. Lixo pago a peso do ouro para ser usado como papel.

Não sonhava. Estava demasiado acordada para isso. Enquanto o mundo gritava a bebedeira lá fora, o vidro tão transparente impedia todavia o desespero de entrar onde já reina a ruína. Talvez houvessem estrelas no céu negro, não sabia. O brilho artificial feria os olhos e corroía a alma. Cegava com a eficiência do ácido e a suavidade do algodão.

Havia um grito preso na garganta, mas não mais voz digna das palavras para mudar o mundo; se é que tal coisa existe. O silêncio é a resposta dos deuses.

As caixas de medicamentos e os frascos de comprimidos empilhavam-se como uma torre de desejos frustrados ao alcance das mãos, primeiro intocados, depois tentados, logo usurpados, no fim derramados. E o pesadelo começa quando não se consegue encontrar a inconsciência. Na esperança do vazio foi plantada a semente do desconhecimento, e quando o universo respira ar salgado de lágrimas, queremos tão somente poder calar o sentimento de injustiça que não nos deixa dormir.

A história é a mesma não importa em que livro se leia. Os lençóis são ásperos sobre a pele nua e febril, mas o coração é eterno bloco de pedra gelado, à espera de um relâmpago que atinja o sistema nervoso e com uma descarga de electricidade vermelha quebre a abstinência de emoções. Mas após o choque, os sintomas de alucinação deslizam numa nostalgia casta até caírem na realidade que se escondia discretamente por detrás da ilusão.

A mentira é sempre difícil de engolir, em especial quando nos beija o rosto e dança à nossa frente a coberto de um manto branco sob o qual morreu a pomba. E o chão é escorregadio debaixo dos pés; a porta recuando com um sorriso manhoso, erguendo a maçaneta para longe dos dedos, que a clausura é o melhor remédio para a insanidade.

É impossível sonhar nestas noites que se derretem na existência veloz deste novo ser. A exaustação infiltra-se nos músculos e pesa nos ossos; a mente não pensa como antigamente, carregando nos seus pulmões a nicotina dos outros, que a droga é cara mas anda a solta nas ruas à espera de lábios que a inspirem. Um lento abraço mortal como um fantasma que vagueia no escuro do quarto enquanto os espíritos despertos acreditam que ainda conseguem ver. Enigma escrito na areia para o mar apagar, que o tempo mostra todas as soluções e são sempre iguais.

Melancolia refinada sob o luar apaixonado, que a cadência deste peito é tão regular como o tiquetaque de um relógio. Se o sol brilhasse de noite, estaria a dormir. Mas o irresistível não é o convencional, e malas desfeitas são vidas abertas para o encanto de perder umas horas para as viver.


24-Out-10


sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Lack of sunshine

O beijo desta história é contado às três da madrugada e sabe a acre.
Quando os ricos vencem, os pobres viram a cara e tentam de novo. Às vezes as palavras acumulam-se na garganta e é difícil respirar. Mas os que superam essa provação são superiores de consciência e controlados de alma.
Nem todos os contos de fadas têm finais felizes. Por vezes não há sequer fadas para embelezar a metáfora de uma humanidade que se declara pintada de negro por luto à inteligência de metade. A metade esperta. A metade falsa.
Devia riscar de uma vez palavras pejorativas do meu dicionário. Devia eliminar emoções que me impedem de olhar por mais de vinte segundos para rostos que estiveram tão próximos do meu. Sinto-me mal por isso.
Gostava de poder olhar todas as pessoas de frente. Mas quando sabemos de mais, o interior sujo explode para o exterior e os meus olhos rebelam-se contra a visão da verdade que por uns tempos fingimos ignorar.
A história do pecado é um faz de conta que começa com um traje angelical e acaba com a imagem de chifres e tridentes. Mas vamos fingir que ninguém viu nada e cobrir a face com um lenço branco para tudo parecer menos negro e vermelho.
Filosofias de vida, ah, para que servem! Quero o meu Algarve por uma semana, que nestes dias sobram os distantes e os arrependidos a dançar nas águas na ria. Porque nada é o que desejávamos ser e o comboio para casa parte em dez minutos.
Por que longínquo lugar me fui apaixonar! Tão semelhante na paisagem, no cheiro, na cor, no Sol que brilha com a mesma intensidade. Mas quando os outros voltam a casa, faltam-me os braços para me abraçar.
Uma semana. Desta precisa hora a uma semana. Não vou contar as horas. Não quero entrar em desespero. Mas hoje o Sol não brilha em Aveiro com a intensidade algarvia e falta qualquer coisa aqui.
Inspiro fundo. Está quase.
O Sol vai brilhar de novo.
E o comboio já partiu.

22/10, 0:22

O ar é áspero na minha garganta e no vazio no meu olhar escondem-se palavras que ninguém deveria jamais ler. A história é longa para ser contada, mas tal é a urgência que se saltam parágrafos e dos argumentos passa-se para a revolta que é o fruto da injustiça e da falsidade. Quando o sangue ferve tanto que abriria um buraco na parede, o coração bate acelerado e a língua não se contem. As mãos avançam mais rápido e censuram os insultos que deveriam ser proferidos como estaladas na cara daqueles que têm tanto de honestidade como de respeito pelos outros. A fúria sim é o mote dos deuses, que deviam erradicar certos Homens como certos Homens erradicam a verdade, mas se esperarmos por justiça no mundo vamos morrer na feliz ignorância de não conhecer a realidade negra e crua em que vivemos. Que seja então frustrada, peso pesado na consciência do ser e chão para pisar por acreditar que ainda há gente sincera. Não posso gritar mais alto que a minha voz, mas pintaria um megafone à minha frente para que ouçam que esta merda não se faz!

domingo, 17 de outubro de 2010

Saudades

Uma semana mais. Cada domingo é uma provação. Eu vou chegar ao final deste post com lágrimas no olhos. Talvez até no primeiro parágrafo. Tenho saudades de casa, mais tenho saudades de abraçar os meus pais, de ver a minha irmã. Queria estar lá hoje.
Este fim-de-semana eles foram à feira de Faro. Queria estar lá. Queria tanto. A minha irmã gritou que me adorava do topo de um daqueles carrosséis que quase te põe de cabeça para baixo. Eu também a adoro.
Queria poder estar um pouco mais perto e ir lá para a semana. Mas faltam outras duas. E hoje as saudades apertam mais que no comum dos dias. Não sei porquê. Ou talvez saiba. Hoje a minha família está toda junta e falto eu. Pronto, eu sabia que ia chorar.
Devia ir para casa (aqui em Aveiro, digo); estou no shopping porque não tenho net em casa. É uma treta. Preciso de ver as pessoas em vez que ouvi-las somente. Preciso de um abraço. Preciso da minha BF, da minha prima, do meu Algarve.
Preciso de parar de escrever.

AMO-VOS <3

domingo, 10 de outubro de 2010

Chove em Aveiro, mas o meu Sol brilha

Já sei de cor a paisagem do meu novo berço, o cheiro da ria e a brisa que arrefece os corpos e aquece os corações. Já sei de cor o caminho, já abracei esta agradável rotina que é tanto nova e inesperada, volátil e, todavia, já estável nos rostos que me acompanham. Cheguei depressa onde queria. E há noites em que a felicidade é tão embriagante que não consigo dormir.
Vou coleccionando memórias como sorrisos. Há dois dias estive em Lisboa. O motivo da viagem não valeu a viagem. Mas visitar aquela amiga fê-lo valer a pena. É em momentos como estes que se vê a verdade das amizades que somamos ao longo dos tempos. E nessa noite olhámos para velhas fotografias e rimos e recordámos, e eu senti que cada passo até hoje esteve certo. Não importa as lágrimas que alagaram o caminho, hoje sou uma pessoa feliz. E é estranho como dizem isso de mim. Costumava ser mais calada e sombria e, sim, por vezes triste. Aveiro iluminou-me. Mudou-me de uma forma que só esta viragem radical poderia ter desencadeado.
Agora, estou satisfeita. Podia fazer mais por mim. Podia lutar com mais força para publicar os meus livros, mas não sinto esse ímpeto, não sinto essa insatisfação. Esse sonho permanece enquanto outro está a ser vivido, e completa-me de tal forma que não há espaço para querer ardentemente algo mais.
Sou feliz. Ponto final.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Viagem

Procuro um pouco de espaço
Cada superfície da minha vida está coberta
Os pequenos nadas acumulam-se em redor
Singulares objectos de necessidade humana
Peso irreal contrapondo-se às reais dimensões
Nada ocupa o espaço que deveria
E preciso de tudo nesta conjuntura banal
O futuro é adivinhação certa de gente incerta
Mas a lógica combate a imprevisibilidade
E a humanidade é mais feliz assim.

Olho em volta e sinto-me pequena
Somente com dois braços para carregar uma vida
E estas costas que se vergam sob o peso do passado
As roupas que embrulham o pecado da nossa alma
Livros que contam sonhos a enganados sonhadores
Água, papel e sabão, para reinventar a história
Sem erros desta vez, que a experiência dói
E as ligaduras ficam mal na fotografia.

Encontro um pouco de espaço
Na mala de um viajante cabe sempre a saudade
E a memória cálida da promessa de um regresso
Brevemente longínquo, que o mundo é grande
E a ansiedade por um pouco mais de novidade
Reverbera excitada na ébria vontade de partir
Que sempre vence a sóbria vontade de ficar
Não fosse este o início de outra viagem.

domingo, 3 de outubro de 2010

Consciência algarvia

Este Algarve parece uma realidade distante, de dois anos, dois meses, nunca duas semanas. Parece uma outra vida, ou acordar de um sonho e a outra vida é aquela que ficou em suspenso lá em Aveiro.
Este Algarve parece algo velho e familiar, insuficiente. Dá vontade de fundir as duas vidas, o melhor de cada numa só... encurtar um pouco a distância. Colocar o Algarve no Porto, sei lá!
Este Algarve, um presente que quero guardar, com pessoas que habitam nas cavernas do meu coração, mas ainda uma etapa para passar à frente.
Neste Algarve, parece que aquelas foras duas semanas sonhadas, uma vida de alguém que não eu, uma experiência noutro corpo. E não obstante as saudades, gentes para abraçar, novidades para contar cara a cara, quero voltar. Quero voltar.
Apaixona-me a intensidade com que a vida é vivida naquela cidade à beira da ria. Hipnotiza-me a verdade com que as coisas, as situações, os sentimentos tomam forma na minha própria pele. Numa me senti tão viva. Tão parte de algo. Tão livre. Tão eu própria para amar e odiar - mas amar sobretudo.
Sinto como se de repente, lentamente, a realidade superasse o refúgio da ficção e as palavras escritas perdessem valor junto das palavras ditas. É como chegar ao fim do dia, e com internet ou não, descobrir que a necessidade de desabafar para o "papel" perdeu-se na certeza de que todo o pensamento de valor já foi partilhado e, acima de tudo, já foi ouvido.
É alegre a saudade da solidão e é quente a decisão de encontrar alguns minutos para ela.
A vida recria-se e reconstrói-se e é doce o prazer de fazer melhor, como a expectativa do futuro que quando vem me abre um sorriso nos lábios.
E sei, com a certeza da decisão certa, que o palco da minha vida mudou.
Aqui no Algarve, estou por detrás das cortinas. Mas é um tranquilo lugar para se estar, recarregado a energia para viver o futuro que o presente prometeu.

sábado, 2 de outubro de 2010

Futuro a cores

O futuro tem cores, as cores do presente pintado com gargalhadas estridentes no meio da rua semi-vazia, onde um homem corre atrás do camião do lixo e os universitários olham estupefactos, com o sangue já aquecido pelo álcool.
O futuro tem o cheiro de um presente onde há boas experiências que fedem, como farinha e azeite com café e arroz, que deixa as pessoas ditas normais a perguntarem-se o raio se passou com aqueles miúdos de pijama.
O futuro tem as cores garridas das promessas que um companheirismo súbito rapidamente solidificado em amizade, que de tão espontâneo rompe as regras e desafia as separações da burocracia de gentes que nem sabem explicar as suas normas.
O futuro é um contraste que apaixona e reinventa a vida, trocando os pólos do conhecimento e colocando-os novamente no sítio, como o susto de uma realidade nova que se revela a melhor experiência de sempre.
O futuro tem cores, as cores do presente pintado com coragem e amor, e disparates às três da manhã, sonambulismo pela madrugada e uma canção para rebentar as vozes já roucas, que ser universitário requer muita gritaria.
Mas aconselha-se.

29-Set-10