O delírio era doce e consciente, enquanto deitada na cama pequena demais para o seu tamanho. A luz no tecto tinha um pesado ar hospitalar e zumbia. O chão era o refúgio cansado dos objectos que sustentam a vida humana. Lixo pago a peso do ouro para ser usado como papel.
Não sonhava. Estava demasiado acordada para isso. Enquanto o mundo gritava a bebedeira lá fora, o vidro tão transparente impedia todavia o desespero de entrar onde já reina a ruína. Talvez houvessem estrelas no céu negro, não sabia. O brilho artificial feria os olhos e corroía a alma. Cegava com a eficiência do ácido e a suavidade do algodão.
Havia um grito preso na garganta, mas não mais voz digna das palavras para mudar o mundo; se é que tal coisa existe. O silêncio é a resposta dos deuses.
As caixas de medicamentos e os frascos de comprimidos empilhavam-se como uma torre de desejos frustrados ao alcance das mãos, primeiro intocados, depois tentados, logo usurpados, no fim derramados. E o pesadelo começa quando não se consegue encontrar a inconsciência. Na esperança do vazio foi plantada a semente do desconhecimento, e quando o universo respira ar salgado de lágrimas, queremos tão somente poder calar o sentimento de injustiça que não nos deixa dormir.
A história é a mesma não importa em que livro se leia. Os lençóis são ásperos sobre a pele nua e febril, mas o coração é eterno bloco de pedra gelado, à espera de um relâmpago que atinja o sistema nervoso e com uma descarga de electricidade vermelha quebre a abstinência de emoções. Mas após o choque, os sintomas de alucinação deslizam numa nostalgia casta até caírem na realidade que se escondia discretamente por detrás da ilusão.
A mentira é sempre difícil de engolir, em especial quando nos beija o rosto e dança à nossa frente a coberto de um manto branco sob o qual morreu a pomba. E o chão é escorregadio debaixo dos pés; a porta recuando com um sorriso manhoso, erguendo a maçaneta para longe dos dedos, que a clausura é o melhor remédio para a insanidade.
É impossível sonhar nestas noites que se derretem na existência veloz deste novo ser. A exaustação infiltra-se nos músculos e pesa nos ossos; a mente não pensa como antigamente, carregando nos seus pulmões a nicotina dos outros, que a droga é cara mas anda a solta nas ruas à espera de lábios que a inspirem. Um lento abraço mortal como um fantasma que vagueia no escuro do quarto enquanto os espíritos despertos acreditam que ainda conseguem ver. Enigma escrito na areia para o mar apagar, que o tempo mostra todas as soluções e são sempre iguais.
Melancolia refinada sob o luar apaixonado, que a cadência deste peito é tão regular como o tiquetaque de um relógio. Se o sol brilhasse de noite, estaria a dormir. Mas o irresistível não é o convencional, e malas desfeitas são vidas abertas para o encanto de perder umas horas para as viver.
24-Out-10