As minhas mãos fedem com o cheio de vidas queimadas.
As malas então no chão e o bilhete no lixo. A viajem acabou aqui, na hora da partida. O comboio ainda não chegou, mas o meu corpo já jaz desfeito nos carris, despedaçado pelo choque frontal com a vida. O meu rosto está voltado para o céu cor de sangue. Estas lágrimas são doces.
Na plataforma, ninguém me vê. O ar está cheio de um silêncio murmurado, uma ansiedade borbulhante, uma antecipação febril pelo encontro com o futuro.
Levanto-me, reunindo todos os fragmentos de mim, sem esquecer o coração, músculo cansado por anos de esforços vãos, e resistindo à tentação de deixar para trás as mãos, armas do pecado. Não levo as malas. Não preciso delas.
À meia-noite em ponto, uma mendiga vai coxear pela plataforma, em busca dos bancos protegidos por painéis de vidro, onde poderá dormir mais aconchegada, e ficará feliz por encontrar as malas abandonadas. Isto se outras mãos gananciosas não as tiverem levando antes.
Ainda assim, a possibilidade de uma boa acção acalenta-me a alma. Ponho cada esforço desde corpo na árdua tarefa de avançar em frente, ao longo da linha. O ar arranha-me a garganta e a cor brilhante do céu faz-me arder os olhos. É fogo divino, consumindo as minhas memórias negras.
O comboio aproxima-se. Não há obstáculos à sua frente desta vez. Não, ele já levou a minha vida antes. Seria cruel levá-la de novo.
Vejo-o passar, como o sonho de um futuro que se perdeu. Não pára. O mesmo comboio nunca pára duas vezes na mesma estação. Ou agarras a oportunidade à primeira, ou juntas-te a mim, sentada no chão, no final da plataforma, fitando a cidade que morre tão lentamente como tu, cobrindo-se de um cinzento cada vez mais enlutado.
Inspiro fundo o ar viciado e fecho os olhos. Penso.
Não matei. Não traí. Não roubei. Mas o meu coração é um destroço pulsante de vida e o mundo parece todo vermelho. As minhas mãos ainda cheiram a queimado. A minha alma ainda se encolhe perante a luz.
Porque tu mataste, traíste, roubaste. E eu estava ao teu lado e não fiz nada.
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