sexta-feira, 22 de abril de 2011

Guarda-me, estranho

Mantém as portas do inferno fechadas, mantém-nas assim para mim. Quero que outro fogo me consuma as lágrimas e me aqueça por dentro. Quero outra chama a lamber a minha pele.
O sorriso que encontras nos meus lábios esta noite, estranho, é produto da ilusão póstuma do homem. Quando um corpo se encontra demasiado seco, ele racha e rasga, ele quebra-se e sorri para ti, com uma dose ácida de ironia inútil. Mas segue sendo, de uma forma macabra e necrófaga, objecto de paixões incondicionais.
Por isso, estranho, cuida bem deste invólucro ainda inspirante e expirante, ainda doce e sem fendas, mas muito frágil perante os embates da vida. Cuida dele como da tua alma, mantém-no longe do inferno. Apesar de tudo, é somente carne para combustão. E apesar de tudo, precisamos dele.
Há uma caixinha lá dentro, entre vísceras e fluídos, que guarda estes pensamentos, que guarda a memória do teu rosto, estranho, e este improvável afecto por ti. E se o corpo quebra, ela foge como borboleta aprisionada num frasco. Para não voltar jamais.
Assim, estranho, mantém-me quente, mantém-me viva, guarda-me aqui. O sorriso que encontras nos meus lábios esta manhã é tão somente o mais puro reflexo do teu.

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